O Estado de Poesia, de Chico César, é fruto da crise por que passamos o público e o artista. Diante da atual conjuntura estético-musical, caracterizada por canções de mau gosto dedicadas a tratar de temas rasteiros por meio de uma linguagem pobre e depreciativa, o trabalho do cantor e compositor paraibano é um grito de lucidez no quarto sem vida que é a música popular no Brasil de hoje. Há exceções, obviamente – como os discos Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos (2009), de Otto, e Chão (2011), de Lenine; mas a maior parte do que se produz é a consolidação de uma proposta antipoética, que contraria os objetivos da MPB de cinquenta anos atrás.
A ideia que alicerça nossa música popular – e que é ignorada pelos compositores das “pisadinhas” e “tchê-rê-rê-tchê-thês” – é sua interpenetração com a arte escrita; e Chico César (como sempre fez em sua carreira) a alcança com glória. A canção que dá nome ao disco é um dos mais belos poemas da literatura contemporânea. Seus versos são uma transposição para o estado de elevação evocado. Reparem-se nos trechos abaixo a riqueza da linguagem com que se descreve a poesia que emana daquele que ama, a maneira como se aborda a esquizofrênica complexidade da paixão, a sonoridade das aliterações e das rimas:
Para viver em estado de poesia
Me entranharia nestes sertões de você
[...]
Chega tem vez que a pessoa que enamora
Se pega e chora do que ontem mesmo ria
Chega tem hora que ri de dentro pra fora
Não fica nem vai embora
É o estado de poesia
Ao tempo em que trata do amor de forma profunda e enlevada, Chico também o faz de maneira bem humorada e lúdica, percebida não só pela escolha do vocabulário, como também pela melodia alegre (que reforça o significado da palavra “arenguêra”) da canção Palavra Mágica.
Meu coração de novela
Só quer você, minha vida
Arenguêra
O Estado de Poesia é uma obra de arte. E, enquanto arte, fala desta de forma primorosa, por meio de uma metapoesia dedicada à problemática da inspiração, realização e apreciação do objeto artístico. Essa metapoesia é responsável por dar forma ao pensamento provocador de todo o trabalho de Chico César, que brinca com os sentidos e constrói um linguagem própria, como na canção Museu, cujo conteúdo semântico reproduz o sentimento invocador da arte que conceitua todo o álbum.
Musa eu sou seu museu
Do jambo pendurado no jambeiro
E se sonha passa pássaro e balança baloiça
Negam que aqui tem preto, negão
Negam que aqui tem preconceito de cor
Negam a negritude, essa negação
Nega a atitude de um negro amor
A linguagem de Chico é, assim, técnica e intuitiva. Um ímpeto criativo que se confunde com a realidade do homem a ponto de recriá-la, modificá-la; seja numa zona de transcendência do eu, como na canção Da Taça, seja na apresentação de uma peça em que nossos vícios são colocados à mostra, como em No Sumaré (inspirada na Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa). Enquanto na primeira, a poesia de Chico se propõe a divagar pelo (in/sub)consciente, através de imagens inexatas (“Ninguém vem, suponho é um sonho meu”), a segunda tece uma dura crítica social, disfarçada pela uso que se faz da palavra (“E hoje só resta a praça vazia/Onde na noite fria o cachorro do rico faz o seu pipi”).
O poeta paraibano fecha o disco com um manifesto contra o “agrebiz”, como o autor chama o agrobusiness num dos versos de Reis do Agronegócio. A canção é uma enxurrada de verdades escondidas pela grande mídia, para a qual o “agro é tudo”. Esse é, talvez, o ponto alto do disco, o clímax de sua narrativa, uma catarse de 11 minutos. Objetivo e atual, Chico vai fundo nos problemas naturais, sociais e econômicos trazidos pela indústria agropecuária, através de um cruzamento de referências que resgata a história recente do ruralismo no nosso país; como a alusão à ex-Ministra da Agricultura Kátia Abreu, conhecida como miss desmatamento (“Pobre tem mais é que comer com agrotóxico/Povo tem mais é que comer se tem transgênico/É o que acha, é o que disse um certo dia/Miss motosserrainha do desmatamento”) e ao constante debate entre ecologistas e os que defendem esse sistema de exploração.
Vocês me dizem que o brasil não desenvolve
Sem o agrebiz feroz, desenvolvimentista
Mas até hoje na verdade nunca houve
Um desenvolvimento tão destrutivista
É o que diz aquele que vocês não ouvem
O cientista, essa voz, a da ciência
Tampouco a voz da consciência os comove
Vocês só ouvem algo por conveniência
Estado de Poesia é, enfim, um rico e belíssimo trabalho, que transita entre a leveza e a dor do ser, marcado pelo sotaque nordestino e negro de Chico, que em mais de 20 anos de carreira tem nos presenteado com canções que são de encher os olhos e fazer dançar a noite inteira. Chico César é #MúsicaNasOiça!
Willy Nascimento Silva
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