terça-feira, 23 de maio de 2017

[Album Review] Transa


Gravado no exílio londrino de Caetano Veloso, Transa é o quinto álbum de estúdio do cantor e compositor baiano. Lançado em janeiro de 1972, o disco, que conta com a incrível banda formada por Áureo de Souza (baixo) Jards Macalé (guitarras) e Tutty Moreno (bateria e percussões), além da voz cortante de Gal Costa, presente em alguns trechos, reproduz com profunda beleza o estranhamento/deslumbramento de ser injetado numa (e ter injetado em si uma) cultura estrangeira, manifestada, sobretudo, pela mistura das línguas inglesa e portuguesa nos versos que compõem o disco. E, na medida em que é transformado pela informação que recebe, Caetano modifica o mundo em que está inserido.

Já na primeira faixa, You Don’t Know Me, ele finca os pés em sua brasilidade múltipla, caracterizada pela cultura popular que é, muitas vezes, negligenciada em função de um estereótipo de Brasil que os “gringos” julgam conhecer. A miscigenação que define nosso povo e arte é reforçada pela referência à letra de Hora do Adeus, de Luiz Gonzaga, que alude à grandeza do território brasileiro e suas diferentes regiões.

You don't know me
Bet you'll never get to know me

[...]

Eu agradeço ao povo brasileiro
Norte, centro, sul inteiro
Onde reinou o baião

Um dos versos em que essa interpenetração de linguagens se faz mais presente está na canção Nine out of Ten: “I'm alive and vivo muito vivo, vivo, vivo”. Aqui, a simultaneidade das expressões brasileira e estrangeira é explicitada num continuum que transcende as barreiras idiomáticas.


Triste Bahia é uma canção-colagem. Caetano cria um espaço onde o barroco de Gregório de Mattos encontra o popular das cantigas de roda. Nesse ponto, a influência da estética antropófaga, baseada na catalisação do(s) (múltiplos) outro(s), é latente. O poema do Boca do Inferno continua resistindo ao tempo, reverberando ainda nos dias atuais e “modernizando o passado”, como diria Chico Science.

Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante

[...]

Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…


A influência das canções de domínio público se manifesta também na faixa It’s a Long Way. Novamente, Caetano cruza versos em inglês com excertos de música popular brasileira, desta vez, estabelecendo uma relação com a cultura pop internacional, representada pelas canções dos Beatles, à época já canonizados.

Woke up this morning
Singing an old, old Beatles song

A única canção do disco não composta por Caetano Veloso é Mora na Filosofia, de Arnaldo Passos e Monsueto Menezes, que, com o arranjo de Macalé, ganhou um som meio “samba-blues”.

Em Neolithic Man, fica evidente a influência psicodélica dos anos 1970, relatando experiências de contato com Deus, compreensão do tempo e percepção da vida.

God spoke to me
From inside the newstone one day
You're my son
And my eyes swept the horizon
Away

O disco fecha com um blues ao estilo de J.B. Lenoir. Nostalgia (That's What Rock'n'roll Is All About) tece uma crítica à rebeldia fugaz do rock ‘n’ roll, muitas vezes dedicado à autoafirmação de sua ideologia libertária em detrimento de reflexões mais profundas a respeito da sociedade e do mundo.

You just feel faintly proud when you hear they shout
Very loud, "You're not allowed in here, get out"
That's what rock'n'roll is all about

Transa é, enfim, uma das obras-primas da música internacional. Seja pela riqueza melódica que dá aos versos de Caetano um efeito de imunidade ao tempo, seja pela sustentação de uma estética própria, capaz de apresentar ao mundo um Brasil ainda incógnito.

Caetano Veloso é #MúsicaNasOiça.

Willy Nascimento Silva

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